20 DE FEVEREIRO, DIA NACIONAL DA VISIBILIDADE TRANSMASCULINA - UMA DÉCADA DO PRIMEIRO ENCONTRO NACIONAL DE HOMENS TRANS E PESSOAS TRANSMASCULINAS (ENAHT)
Por Caio de Souza Tedesco*
Há dez anos, era iniciado o I Encontro Nacional de Homens Trans e Pessoas Transmasculinas (ENAHT), com o mote Da invisibilidade à luta. O evento começou em uma sexta-feira (20/02), terminou em uma segunda-feira (23/02) e, durante este final de semana estendido, deixou a Universidade de São Paulo (USP) repleta de pessoas transmasculinas de identificações diversas, como homens trans, transhomens, transmasculines e não-bináries.Com uma programação extensa, intensa e diversificada[1], no I ENAHT foram discutidas temáticas que seguem “na pauta do dia” para a comunidade transmasculina brasileira, como História, Saúde, Transfeminismo, Educação, Empregabilidade e Políticas Públicas. Tais debates estiveram presentes respectivamente nas mesas Resgate histórico do movimento social de travestis, mulheres transexuais e homens trans no Brasil, Saúde Integrada do Homem Trans: Processo transexualizador, DST/AIDS e atenção básica, Homens Trans e o Transfeminismo: reivindicando masculinidades em corpos oprimidos pelo machismo, Políticas Sociais: os desafios da educação e empregabilidade para os homens trans brasileiros e no debate Uma lei de identidade de gênero para o Brasil.
Além disso, foram discutidas questões basilares para o desenvolvimento do movimento social transmasculino organizado no Brasil, como identidade política. Certamente, houve uma contribuição de grande impacto do ENAHT no desenvolvimento do consenso atual de utilizar “transmasculinidade(s)” para se referir às experiências e identidades de gênero de pessoas que foram designadas mulheres ao nascer e desenvolveram uma identidade de gênero no âmbito das masculinidades. Tal consenso é voltado para usos políticos e acadêmicos, por exemplo, pois diz respeito à criação de uma identidade coletiva, com intenção e consciência de sua dimensão política. É interessante destacar que, enquanto um conceito guarda-chuva, as maneiras individuais de nomeação da própria identidade de gênero podem ser diversas, como “homem trans”, “transhomem” e “boyceta”, assim como a própria identidade em si, que pode ser não-binária ou binária.
Só de passar os olhos pela programação do I ENAHT, já é possível perceber efeitos da passagem do tempo em nosso movimento, considerando o uso hegemônico do termo “homem trans” em detrimento de “transmasculinidades”, bem como de “DST” no lugar de “IST”. Contudo, mais interessante ainda é perceber o avanço do movimento pela despatologização das transidentidades no Brasil (temática da terceira mesa), pois três anos depois do Encontro (2018), a transgeneridade deixou de ser considerada uma doença mental pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o que foi uma conquista incomensurável do movimento trans a nível global e exigiu muita articulação e mobilização a níveis locais, regionais, nacionais e internacionais.
Falando em tempo e no destaque que foi dado, no I ENAHT, à historicidade do movimento trans no Brasil, o Dia Nacional da Visibilidade Transmasculina é um dia para lembrar, memorar e contar nossas histórias. Aliás, apesar do I ENAHT ter acontecido há dez anos, a História Transmasculina brasileira não começou em 2015. Nosso passado é tão longínquo quanto o de outros grupos sociais marcados por gênero – não surgimos repentinamente na década de 2010, nossos passos em direção à visibilidade sociopolítica vêm de longe.
Não há um ponto de partida único ou específico desta trilha transformacional, mas quando falamos de História e Visibilidade Transmasculina na contemporaneidade, precisamos lembrar de sujeitos que teceram e foram tecidos pelos fios desta narrativa, como Mário da Silva, Anderson Herzer, João Walter Nery. Também não podemos deixar que caiam no esquecimento Demétrio Campos, Agnes Lemos, Felipe Reis e Henrique de Oliveira.
Mário da Silva foi a primeira pessoa transmasculina, no Brasil, a passar por procedimentos cirúrgicos voltados para a transição de gênero. Oriundo de Itajaí, cidade interiorana de Santa Catarina, seu caso se tornou notícia nacional através da revista O Cruzeiro, na edição publicada em janeiro de 1959. Sua transição, conforme nos explica Juno Nedel Mendes de Aguiar (2020), foi facilitada pela endonormatividade, já que Mário da Silva era intersexo. Ou seja, a normatização social que historicamente (re)engendra a crença da binariedade corporal de gênero – que chega até mesmo ao nível cromossômico, com “XX versus XY” – patologiza corporeidades intersexo (XXY, por exemplo). Mário da Silva, dessa forma, passou por uma “correção” de gênero, pois sua corporeidade foi considerada “suficientemente masculina” pela classe médica da época.
Maura Maria virou Mário[2], por sua vez, não foi a primeira matéria de jornal sobre pessoas transmasculinas a circular em nosso país. A partir de Adriana Galuppo (2019), sabemos das existências de Edmundo, Jandir e Ricardo, noticiadas entre as décadas de 1940 e 1980 em Minas Gerais. Isso comprova que existiram pessoas transmasculinas no passado brasileiro e, para além disso, significa que havia um debate público sobre pessoas com vagina que transgrediram gênero, mesmo que tímido, na primeira metade do século XX.
Porém, este debate público não nos trazia “visibilidade”. As matérias, em geral, tinham teor vexatório e, em suma, transfóbico. O que se tornava “notícia” era, justamente, a ideia de que eram “mulheres fingindo ser homens” e, comumente, ainda eram patologizados e acusados de cometerem crimes, como estelionato.
A partir disso, podemos questionar: o que é visibilidade? Qual tipo de visibilidade queremos? De qual tipo de visibilidade precisamos?
Nesse sentido, Anderson Herzer (1962 – 1982) e João Walter Nery (1950 – 2018) deram passos fundamentais em direção à visibilidade transmasculina, através de suas narrativas de si. Herzer, em 1982, lançou A queda para o alto, primeira autobiografia de autoria transmasculina brasileira. Já Nery, dois anos depois, em 1984, lançou Erro de pessoa: João ou Joana, primeira autobiografia publicada no Brasil que foi escrita por um homem trans e relatou o processo de transição de gênero de uma pessoa transmasculina.
Sobretudo a partir de Erro de pessoa: João ou Joana, inicia-se um debate público politizado sobre transmasculinidades em nosso país. Desde a capa da obra até o último “suspiro”, em Erro de pessoa deparamo-nos com uma escrita biopotente, voltada para a política de vida, que enfrenta a transfobia estrutural (Tedesco, 2022).
“Este livro é um grito e o dedico a todos os injustiçados […] que lutaram ou ainda lutam por seus direitos […]”, afirma João W. Nery em sua dedicatória (1984, p. 5). Ainda, ao longo do livro, Nery produziu manifestos, denúncias e relatos eloquentes e sensibilizadores, como o que vemos abaixo, no qual compara a transfobia estrutural com o nazifascismo alemão,– Considero que somos rebentos espúrios de uma sociedade inóspita, que se recusa segurar a nos aceitar em sua jurisprudência médica e legal. Somos rejeitados porque não correspondemos às suas aspirações preestabelecidas, e transformamo-nos em minorias asfixiadas. Ela tenta, em função do sexo genital de cada um, moldar seus filhos num só sentido, seja para o “instrumental masculino” ou para o “expressivo feminino”, e por nós não nos sujeitarmos aos seus antolhos sociais, tornamo-nos “objetos folclóricos”.
“A lei deve visar à ordem e ao bem-estar social, e o que almejamos é justamente nos adaptar a esse meio. Sendo assim, a cirurgia passa a ser vista não como ponto de partida, mas de chegada. Não somos insanos porque não somos doentes como a sociedade tenta nos colocar. A sanidade não tem nada a ver com a normalidade, e me parece um conceito muito conveniente em função do momento histórico em que se vive. Haja vista no nazismo, onde as próprias instituições psiquiátricas mutilavam cérebros humanos ou asfixiavam com gás milhares de pessoas que diziam insanas. Sadios eram os membros da Gestapo ou da SS. Normal era acatar os princípios e ordens do Fuhrer. […]” (Nery, 1984, p. 172).
Evidentemente, Nery compreendia e expressava-se sobre transfobia a partir das ferramentas conceituais da época. A palavra, em si, ainda não era parte de nosso vocabulário. Todavia, isso não significa que os efeitos da transfobia não fossem reais e facilmente sentidos e vividos pelas pessoas trans do período. Ressalto, ainda, que ambas as autobiografias foram escritas e publicadas em plena Ditadura Militar, momento em que a endocisheteronorma (Rodriguez; Medeiros, 2024) foi intensificada pela Doutrina de Segurança Nacional – doutrina que torturou e exilou irmã e pai de João W. Nery, Solange Albernaz de Melo Bastos e Paulo de Mello Bastos, respectivamente.
Logo, não podemos esquecer como a história transmasculina brasileira se imbrica com uma história nacional mais ampla. Fomos costurando caminhos possíveis para tornarmo-nos visíveis, indo contra uma forte correnteza que busca, até hoje, nos marginalizar e nos enquadrar como “loucas”, “doentes” e “criminosas” – e como “mulheres”, o que por si só não é ruim, apenas não é o que somos.
Somente na década de 2010 que o movimento social transmasculino passou a se organizar, sobretudo por conta dos seguintes elementos: 1) avanços das tecnologias de comunicação virtual; 2) visibilidade das experiências de homens transexuais e transmasculines promovida pela publicização de Viagem solitária, segunda autobiografia de João W. Nery (2011); e pela experiência política em movimentos sociais LGBTQIA+, feministas, entre outros, de pessoas transmasculinas que viviam “dispersas”, sem acesso ao conceito de transmasculinidade para proporcionar uma compreensão mais adequada de si ou sem acesso a uma rede de pessoas transmasculinas que proporcionasse uma experiência identitária coletiva (Freitas, 2014; Banké; Tenório, 2021; Tedesco; Santos, 2022).
A partir disso, em 2012 foi criada a Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), que durou até 2013, quando foi fundado o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT). Hoje, no Brasil ocorre a segunda maior marsha transmasculina do mundo, em São Paulo. Há inúmeros coletivos e, até mesmo, House de Ballroom transmasculina, como a House of Audacia[3].
Infelizmente, ainda não conquistamos uma cidadania plena e a visibilidade necessária para que tenhamos dignidade de vida assegurada. Seguimos vivendo em um estado que se faz genocida-suicidário (Goulart, 2018) para a população transmasculina. Por isso, não podemos nos esquecer de Demétrio, Agnes, Felipe e Henrique, transmasculines cujas vidas foram ceifadas cedo demais, cuja arte, dança, poesia, escrita, ativismo, afeto, sensibilidade, inteligência e o pulsar foram interrompidos pelo cistema, tenha sido ele suicidário ou negligente.
Por isso, precisamos marshar, dar continuidade à luta pela visibilidade das nossas vozes, narrativas e demandas, e pelos nossos direitos. Nossas masculinidades embucetadas rexistem.